Artigo - Acordos Regionais de Comércio e as questões de gênero
- Liga de Comércio Internacional PUC-Rio
- 6 de jun. de 2024
- 9 min de leitura
Por: Leticia Lelis
Fonte: Equipe Comex do Brasil
Introdução
No início deste ano de 2024, o Brasil confirmou a sua adesão ao Arranjo Global sobre Comércio e Gênero (AGCG). Esta preocupação com a pauta comercial e questões de gênero, não está sendo um evento isolado dentro do governo brasileiro. Tem-se apostado em iniciativas internacionais e nacionais. Temos como exemplo, a forte agenda das mulheres no G20, grupos de estudos e também em programas como “Mulheres no Comércio Internacional”. Até mesmo a escolha de algumas mulheres para representar postos de liderança foi implementada; como Tatiana Prazeres, secretária do comércio exterior no Ministério do Desenvolvimento, da Indústria e do Comércio (MDIC).
É notório que a preocupação com a agenda de gênero vem sendo uma das prioridades do novo governo. Este movimento não é uma exclusividade brasileira. A pauta de gênero ou até mesmo uma política externa declaradamente “feminista”, foi lançada por países como França, Suécia, Alemanha, Chile etc. O argumento central é a importância da representatividade, a busca por um desenvolvimento sustentável, o peso econômico das mulheres e seu efeito multiplicador na economia (LEAL, PARANHOS & AQUINO BONOMO, 2023). Entretanto, deve-se ter um olhar crítico da extensão destas políticas, pois existem diversos “tipos” de mulheres e formas de promover a igualdade. Assim como, ter mulheres em postos de liderança e representatividade, não implica em um compromisso com as questões de gênero e até mesmo o feminismo. Sendo assim, este artigo, tem o objetivo de realizar uma análise crítica dos últimos Acordos Regionais de Comércio (ARCs) e a agenda da OMC. Este artigo, tem a ambição contribuir com visões e possibilidades para construirmos algo além de uma “fachada de Potemkin” (1).
Comércio Internacional e Gênero
A ideologia fundante do “por que realizamos trocas” nas economias de mercado é o livre-comércio. Tal ideia, possui uma “herança” epistemológica baseada e formulada em instituições que se beneficiam da desigualdade, descriminação e distorção de mercados (ORFORD, 2016). O principal “ator” e formulador destas políticas é o ser racional, o homus economicus. Essa construção, muitas vezes se auto proclama como neutra e pura, quase como uma lei da natureza. Esta “herança” não se estendeu apenas às instituições econômicas, mas também, na forma como enxergamos e operacionalizamos o Direito Internacional - base fundamental para realizarmos acordos, tratados e declarações. Consequentemente, as trocas internacionais, também conseguem endossar e fortalecer certos padrões da Divisão Internacional do Trabalho (DIT) e da Divisão Sexual do Trabalho (DSTr) . Logo, percebe-se a força e o impacto que os fluxos e as escolhas políticas do comércio internacional têm sobre a sociedade. Se realizarmos um recorte, racial, de gênero, idade e localização, percebemos que essas assimetrias podem aumentar. Portanto, se quisermos utilizar o comércio internacional como um canal de desenvolvimento, devemos nos tornar atentos a estes aspectos (FERREIRA & CASTILHO, 2024).
Os compromissos da Agenda 2030 e dos Objetivos para um Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas (2015), fizeram com que a agenda de gênero se tornasse de interesse dentro da comunidade internacional. No comércio internacional, não foi diferente. Lançaram-se projetos e acordos que declaradamente se preocupavam com a inserção de empreendedoras nos fluxos de comércio internacional, acesso à crédito, redução do “imposto rosa” e dentre outros. Por outro lado, muito se critica a extensão e também quem serão as reais beneficiárias destas políticas - afinal os interesses da população feminina não são homogêneos.
Em Ferreira & Castilho (2024), é sumarizada as justificativas e meios econômicos mais populares destes acordos. No espectro mais liberal, a inclusão de mulheres no comércio levaria a uma maior competição no mercado com os homens; isso acarretaria a um maior equilíbrio e redução da diferença de salários entre ambos. Há também visões que defendem a desregulamentação do trabalho e promoção de mão de obra barata, pois seriam abertos mais postos de trabalho e faria uma pressão sobre os altos salários dos homens. Ambos concordam com o efeito multiplicador dos lucros e a redução da desigualdade salarial, entretanto, não são propostas que se preocupam com o desenvolvimento econômico além do mercado e com questões “feministas”. Também, ignoram variáveis como: dedicação e tempo das mulheres, trabalho doméstico não-remunerado, assimetrias na economia mundial, desigualdades estruturais de cada país, segurança no trabalho, violência e assédio. Nestas abordagens, corremos o risco de cairmos nas armadilhas de promovermos políticas excludentes, centradas no Norte Global e nas camadas gerenciais, sendo um “feminismo dos 1%” (2), onde a representatividade se dá “pelas de cima”.
Há espaço para uma Economia Feminista no Comércio Internacional?
A Economia Feminista, também critica os “modos de pensar” tradicionais. Mas além da construção, também coloca como centro e objeto de sua análise, as mulheres. O mundo público do mercado e da economia, mescla-se com o mundo privado e doméstico. Esses “mundos” são dialeticamente integrados. Teóricas como Federici (2018), observam que a existência da esfera doméstica e a sua “separação”, é o que propiciou o sucesso do processo de acumulação de capital. Também é questionado a centralidade e o domínio de temas das esferas masculinas como finanças, mercado, negócios e dentre outros, nas agendas da economia mundial. Tudo que é da esfera feminina é marginalizado, tanto no campo teórico quanto no campo prático (SCHIMANSKI, 2021).
Em Schimanski (2021), é pontuado as visões que direciona as politicas do comércio internacional e a a Economia Feminista em geral. Estas visões são: (i) Economia de Gênero: preocupada com a inserção das mulheres na esfera masculina, como o mercado e ocupar espaços de representação tradicionais; (ii) Economia Feminista de Conciliação: que tem a ambição de redifinir a nossa ideia de trabalho e dar visibilidade a esfera feminina; (iii) Economia Feminista de Ruptura: abordagem que busca outras formas de se viver e preza pela sustentabilidade. A partir destas visões, podemos identificar quais são as intenções e o alcance das iniciativas celebradas.
O crescimento dos acordos baseados em questões econômicas de gênero, são essenciais para dar visibilidade e consciência da dominação das mulheres, promover padrões de cooperação internacional, difusão de políticas públicas domésticas e/ou internacionais e a institucionalização de uma “cultura” de políticas comerciais de gênero. Grandes empreitadas foram lançadas pelo Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional (FMI), a OCDE e o Sistema ONU. Apesar de serem iniciativas não vinculativas e obrigatórias, foram importantes para o levantamento de dados macroeconômicos de pesquisa, recomendações para os acordos, mecanismos de monitoramento etc (idem, 2021). Existem críticas muito concisas em relação ao tipo de economia que se propõe, que na maioria das vezes são liberalizantes. Contudo, o que chama atenção é o silêncio da mais importante instituição do sistema multilateral de comércio, a Organização Mundial do Comércio (OMC).
O que esperar da OMC?
Pela primeira vez desde de o GATT (1944), na OMC em dezembro de 2017, foi feita a Declaração de Buenos Aires sobre Comércio e Empoderamento Econômico das Mulheres, recebendo o apoio dos 127 dos 164 membros da organização. Em 2021, foi inaugurado o Centro de Pesquisa de Gênero da OMC. Este grande passo, é importante para demonstrar que as questões de gênero importam. Entretanto, foi observado que esta questão pouco se desenvolveu dentro da organização.
Para Fabian (2023), o problema da OMC com as mulheres é bem mais profundo, possuindo raízes institucionais e de relacionamento entre ambos. Estes fatores estão presentes desde de seu documento inaugural no GATT (1944). Neste documento em nenhum momento foi mencionado, as mulheres ou questões que fossem do interesse delas. A OMC é uma instituição que favorece o status quo e masculinizado da economia, e portanto, estas lacunas são formas de manutenção desta dinâmica de poder, através da não visibilidade das questões de gênero.
A autora enxerga outro impasse, que está na própria natureza da instituição. A OMC, possui um ethos muito forte e centrado em seus estados-membros e na “hard law”. Além do mais, o poder do consenso e do “compromisso único”, fazem com que o veto de qualquer membro e o não desenvolvimento das negociações, paralisem qualquer iniciativa ambiciosa. Além do mais, a identidade da OMC faz com que haja pouca atenção e espaço a princípios morais e éticos, até mesmo dentro de seu órgão de controvérsias, pois seu foco é o bem-estar econômico e a busca por uma concorrência justa. Implementar cláusula social ou um Sistema Geral de Preferências (SGP), abriria espaço para questionamentos de dumping e colonialismo (3).
Também é destacado o relacionamento conturbado entre a OMC, organizações da sociedade civil e as feministas. Sempre foram vistos como campos antagônicos, como nas memoráveis manifestações anti-globalização de 1999 em Seattle. Nenhum diálogo foi possível, pois a OMC representava instituições neoliberais e promotoras da desigualdade na economia mundial.
As particularidades do regimento da lei dentro da OMC são um outro problema. O sistema de solução de controvérsias se baseia no lex specialis e garante que o direito especializado seja anterior aos dos tratados. Sendo assim, ela possui um funcionamento diferente das regras tradicionais do Direito Internacional Público. Assim, litigar sobre gênero e condutas discriminatórias seria complexo. Além do mais, a OMC assume um risco enorme em suas resoluções, pois se baseia na hard law, ou seja, é vinculativo, possui responsabilidades e instrumentos jurídicos reais. Logo, diante destas problemáticas, há uma grande resistência de criar e até mesmo propor um acordo sobre gênero (idem, 2023).
Acordos Regionais de Comércio (ARCs) na “escala Bhari” e seu impacto às mulheres
Ainda que haja poucas esperanças dentro da OMC, desde de 2018, vem crescendo acordos regionais que possuem disposições de gênero. A África e a Europa, vem se destacando neste aspecto. Na América Latina, o Chile vem sendo o pioneiro. Mesmo que se utilizem da “soft law” - ou seja, acordos não vinculativos e nem obrigatórios - há um movimento em diversos países em incluir capítulos ou menções às mulheres. Entretanto, estes acordos possuem “graus” do quão eles são sensíveis e como eles podem ser responsivos às questões de gênero. Um dos primeiros estudos a se proporem a fazer esta sistematização, é o de Bahri (2019), que lançou o que chamamos de “escala Bahri”. Esta escala, baseia seus dados, a partir do entendimento das intenções e tom da linguagem adotada nos acordos. A autora destaca que devemos observar se: (a) se a linguagem é declarativa ou afirmativa; (b) se existem artigos específicos, capítulos ou apenas menções indiretas. Além destes aspectos, conseguimos qualificar o grau de compromisso do acordo como um todo, que pode ser desde de limitado até optimizado. O grau deste compromisso e aprofundamento pode ser: (i) conscientização, (ii) afirmação, (iii) cooperação e defesa dos direitos, (iv) institucionalização e (v) obrigações legalmente vinculantes e de reforço.
Dito isso, ao analisarmos os últimos ARCs, os que possuem um maior grau de compromisso são o Chile-Canadá, Israel-Canadá e Chile-Uruguai. As últimas apostas da política externa brasileira, como o AGCG, possuem um compromisso iii - sendo um passo razoável nas questões de gênero. Para Ferreira & Castilho (2024), mesmo com a inclusão destes assuntos, ainda parece ser provisões marginais e além disso, chama a atenção que a orientação destas empreitadas muitas vezes são liberalizantes. De fato, os ARCs tentam harmonizar desigualdades dentro do status quo, se aproximando de uma economia de gênero.
O impacto destes acordos para mulheres se dão de maneiras diferentes no lugar que elas ocupam na economia. Mulheres que foram absorvidas pelo mercado ou “trabalhadoras”, ocupam um lugar de privilégio nestas políticas - pois comércio internacional, possui uma forte relação com o mercado de trabalho quando é integrado às Cadeias Globais de Valor (CGV). Para esta população algumas políticas liberalizantes surtem efeitos positivos. Entretanto, isso expõe o país a padrões e desejos do mercado internacional, ignorando características e particularidades estruturais de cada país. Também, é observada uma queda em postos de trabalho de qualidade para as mulheres. Ao analisarmos as mulheres empreendedoras, vemos lacunas de como inserir e posicioná-las contra as grandes empresas dominadas por homens na economia mundial. Por fim, outros grupos podem ficar invisibilizados, como as trabalhadoras no mercado do cuidado e algumas consumidoras que estão em condição de vulnerabilidade social (idem, 2024).
Conclusão
É inegável o papel do comércio na criação de postos de trabalho e a sua relevância na vida de uma parte da população. Considerando que o comércio é uma das fontes de renda do Estado, quando bem gerido e interessado, ele pode ser um dos canais para se promover um efeito distributivo e amortecer as desigualdades estruturais das economias de mercado. Entretanto, percebemos o quão exagerado pode ser denominar estas políticas como declaradamente feministas. A participação da população feminina não está apenas segmentada em setores empregatícios, mas também o doméstico, consumo e empreendedorismo. Em muitos desses acordos, corremos os riscos de reproduzirmos desigualdades em grupos marginalizados. Um passo essencial seria a maior participação destas mulheres em fóruns e negociações internacionais. Outro ponto, é que as mudanças estão ocorrendo a passos lentos. Não devemos nos reduzir e esperar que as instituições atendam os nossos desejos e sim recuperar a presença e a força da mobilização popular. E sim, devemos ocupar todos os espaços e utilizar todas as ferramentas para criar um mundo mais justo.
Notas
Referência a Kuhlmann e Bahri (2023) em “Gender Mainstreaming in Trade Agreements: "A Potemkin Façade"?” , onde fazem referência histórica as falsas fachadas que Grigori Potemkin construiu para impressionar Catarina II da Rússia;
Trocadilho com o livro “Feminismo para os 99%: um manifesto” de Aruzza, Fraser & Bhattacharya (2019);
Ver Fabian (2023).
Referências
(2023), FABIAN, J. ‘Global Economic Governance and Women: Why Is the WTO a Difficult Case for Women’s Representation?’, in A. Bahri, D. López, and J. Remy (eds.) Trade Policy and Gender Equality. Cambridge: Cambridge University Press, pp. 65–94.
https://www.cambridge.org/core/books/trade-policy-and-gender-equality/global-economic-governance-and-women/78B6148089056E499A505E71500EE26D. Acesso em: 24/05/2024
(2016) ORFORD, A. 'Theorizing Free Trade', in Anne Orford, and Florian Hoffmann (eds), The Oxford Handbook of the Theory of International Law, Oxford Handbooks (2016; online edn, Oxford Academic, 2 Nov. 2016), https://doi.org/10.1093/law/9780198701958.003.0036. Acesso em 26/05/2024
(2024) CASTILHO K & FERREIRA, M. Comércio internacional e (des)igualdades de gênero? Debate teórico, canais de transmissão e evidências empíricas. Revista de Estudos Internacionais (REI). Disponível em: https://revista.uepb.edu.br/REI/article/view/2749/2394 Acesso em 26/05/2024
(2021) Schimanski, S. As mulheres na agenda da Organização Mundial de Comércio (OMC). Conjuntura Austral, 12(60), 75–91. https://doi.org/10.22456/2178-8839.113576 Acesso em: 26/05/2024
(2019) FEDERICI, S. O Ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante
(2019) BHARI, A. Measuring the Gender-Responsiveness of Free Trade Agreements: Using a Self-Evaluation Maturity Framework. Global Trade and Customs Journal, 14(Issue 11/12), 517-527. DOI: 10.54648/GTCJ2019064. Acesso em: 27/05/2024
(2019) ARUZZA, C, FRASER, N & BHATTACHARYA, T . Feminismo para os 99%: um manifesto. Boitempo Editorial.
(2023) KUHLMANN, K & BAHRI, A. "Gender Mainstreaming in Trade Agreements: "A Potemkin Façade"?". Georgetown Law Faculty Publications and Other Works. https://scholarship.law.georgetown.edu/facpub/2511
(2023) LEAL, C, PARANHOS C, & AQUINO BONOMO, C. “Comércio e gênero: uma abordagem diplomática”. CEBRI-Revista, Ano 2, Número 6 (Abr-Jun). Publicado online. Link: https://cebri.org/revista/br/artigo/82/comercio-e-genero-uma-abordagem-diplomatica Acesso em: 28/09/2024
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