Artigo - As dificuldades para a conclusão do acordo entre Mercosul e União Europeia
- Liga de Comércio Internacional PUC-Rio
- 29 de dez. de 2023
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Em 1999 os países integrantes dos blocos Mercosul e União Europeia começaram a negociar um acordo de livre comércio, que prevê a derrubada da maioria das tarifas no comércio entre os blocos, que somados englobam quase 800 milhões de pessoas e 25% da economia mundial.1 Porém, 24 anos depois do início das negociações, o acordo ainda não entrou em vigor. Esse artigo tem a intenção de analisar a posição de atores, europeus e sul-americanos, de dentro e de fora do governo, para entender os motivos que fazem com que o acordo esteja demorando um tempo tão longo para ser ratificado.
As negociações do acordo comercial começaram em 1999, e depois de alguns avanços o tratado teve o seu primeiro período de estagnação entre 2004 e 2010. Com o objetivo de superar a crise econômica mundial, as negociações foram retomadas em 2010, porém, a negociação não teve sucesso e foi encerrada apenas dois anos depois. A etapa final de negociação começou em 2016 e foi concluída em 2019.2 Apesar dos dois blocos terem conseguido concluir a etapa de negociação, já faz quatro anos que o acordo ainda não foi ratificado e ainda existem várias divergências que precisam ser superadas para que isso aconteça.
Apesar de haver uma vontade mútua de ampliar a cooperação econômica, as diferenças e assimetrias econômicas entre União Europeia e Mercosul fazem com que haja divergências em relação aos moldes e a extensão do acordo comercial. Até mesmo dentro dos dois blocos existem diferenças e assimetrias que fazem com que os países enxerguem o acordo de forma diferente. Além disso, fatores relativos à política interna dos países também podem gerar divergências, fazendo com que o mesmo país possa mostrar maior ou menor disposição para negociar dependendo de quem estiver no poder.
Na primeira sessão pretendo explicar como as diferenças econômicas e políticas entre os países da União Europeia e do Mercosul geram conflitos de interesse entre eles. Na segunda sessão pretendo analisar o acordo pela perspectiva sul-americana, e na terceira sessão pela perspectiva europeia. E por último, pretendo demonstrar que uma cooperação que também incorpore preocupações sociais e ambientais pode ser uma solução para o avanço da cooperação entre os dois continentes.
Divergências entre Mercosul e União Europeia
O primeiro aspecto a se destacar nas negociações deste acordo são as diferenças estruturais que existem entre a economia europeia e a sul-americana. Em geral, os países da União Europeia possuem tecnologias mais avançadas e maior capacidade de captação de recursos para investimentos. Porém, o nível de salários praticados na Europa costumam ser significativamente mais altos do que na América do Sul e, apesar de garantir um padrão de vida mais alto para os cidadãos europeus, também gera uma desvantagem competitiva para o continente no comércio internacional.
Portanto, a assinatura de um acordo favorece os blocos de formas diferentes. Para o Mercosul, o acordo garantiria aos consumidores acesso a produtos industrializados e alguns serviços europeus a um preço mais barato. Para a União Europeia, o principal benefício seria o acesso a produtos agrícolas vindos dos países do Mercosul, que em geral possuem preços mais baixos, em parte devido ao nível de salários mais baixos que os praticados na Europa. A maioria dos estudos da teoria e da prática econômica indicam que um grau maior de abertura comercial tende a aumentar o bem-estar da população como um todo, no caso do Brasil, por exemplo, é estimado que o acordo gere um aumento adicional de R$ 600 bilhões no PIB até 2034.3 Porém, dificilmente um processo de abertura irá beneficiar a todos os setores de uma economia.
Além da concorrência externa poder afetar negativamente alguns setores dentro de uma economia, esse acordo também pode afetar outras áreas que são alheias ao comércio. Um exemplo disso é a questão ambiental. De acordo com os relatórios da Institute for Agriculture & Trade Policy, a assinatura desse acordo comercial tem potencial para gerar um aumento de emissão de gases Co2 de 8 milhões de toneladas.4 Boa parte disso se deve a expansão da agropecuária em áreas como a Floresta Amazônica, o Cerrado e o Gran Chaco. Além disso, a extração de outras commodities com minério de ferro, prata e caulino prejudica a preservação desses biomas.5
Além da questão ambiental, existem outros fatores que estão sendo questionados pelos europeus. Os relatórios da Institute for Agriculture & Trade Policy também apontam que as restrições ao uso de agrotóxicos costumam ser maiores em países europeus do que em países do Mercosul,6 gerando preocupações em relação a segurança alimentar e concorrência desigual por parte dos europeus. Com a aprovação do acordo, os governos perderam a capacidade de barrar alimentos que são considerados suspeitos de violar a segurança alimentar.
As críticas ao acordo, que foram endossadas por diversos líderes na Europa, não foram bem aceitas por parte dos países sul-americanos. Na cúpula dos BRICS, realizada em agosto de 2023, Lula, presidente do Brasil e do Mercosul, classificou as tentativas dos europeus de impor medidas restritivas ao acordo como “neocolonialismo verde”,7 por usar questões ambientais para defender uma posição protecionista. Em setembro do mesmo ano, durante a cúpula do G20, Lula ressaltou a importância de países mais ricos financiarem mais projetos que auxiliem o desenvolvimento sustentável em países mais pobres. O presidente lembrou que os países desenvolvidos são, historicamente, os principais culpados pelo aquecimento global, e a meta estabelecida em 2010 para que eles financiam projetos de desenvolvimento sustentável nos países emergentes e subdesenvolvidos não foi cumprida.8
O temor em relação ao impacto do acordo não veio apenas por parte dos europeus como também pelos sul-americanos. No caso do Brasil, por exemplo, foi fundada em 2020 a Frente Brasileira Contra os Acordos Mercosul-EU e Mercosul-EFTA. Atuam dentro dessa frente diversos grupos como sindicatos, Ongs, movimentos quilombolas, indígenas, em parceria com outros grupos de outros países sul-americanos que se opõem ao acordo. Além de compartilhar das críticas feitas pelos europeus em relação ao impacto ambiental e insegurança alimentar, a frente também defende que esse acordo deve causar impactos sociais e econômicos negativos para o Brasil, pois, o acordo pode estimular o Brasil a se manter na condição de exportador de matérias primas e importador de produtos com alto valor agregado.9
Divergências entre os países do Mercosul
Além da sociedade civil se mobilizar em ambos os continentes contra a assinatura, e mais tarde, a ratificação do acordo, muitos políticos se opuseram aos moldes com que o acordo foi traçado também. Passando por um período de crescente polarização política, as trocas de governo nos principais países do Mercosul tiveram um grande impacto na forma com que o acordo foi negociado.
A dominância política e econômica de Brasil e Argentina no bloco, fazem com que os dois países exerçam uma grande influência na tomada de decisões, e desde o começo das negociações nos anos 90, o acordo avançou mais rapidamente nos momentos em que os interesses desses dois países convergem.10 A desvalorização unilateral da moeda brasileira no fim dos anos 90 gerou uma indisposição por parte do governo argentino que teve a sua balança comercial prejudicada.11
No início dos anos 2000, a convergência de interesses entre Brasil e Argentina aumentou com os governos de Lula e Kirchner. Porém, essa convergência, gerada em boa parte por questões políticas e ideológicas, incentivou os dois países a priorizarem uma maior integração regional ao invés de acordos comerciais com outros continentes.12 A tentativa fracassada de estabelecer um acordo de livre comércio com a América do Norte (ALCA) também pode ser vista como uma demonstração da força do regionalismo na América Latina no início do século.
Diante desse contexto, o Brasil começou a ampliar as suas relações com o continente europeu por fora do Mercosul. Em 2007, o Brasil e União Europeia estabeleceram uma parceria estratégica que englobava diversos setores como direitos humanos, meio ambiente, comércio, política, pesquisa e inovação.13 Essa parceria não foi bem recebida pelos outros países do Mercosul, principalmente a Argentina, que passaram a acreditar que o Brasil passaria a negociar o acordo comercial em posição privilegiada.14
O ano de 2016 representou um novo ponto de convergência de interesses entre Brasil e Argentina, porém, ao contrário do que aconteceu na primeira década dos anos 2000, dessa vez os governos desses dois países convergem sob uma ótica liberal e defensora da ordem internacional vigente.15 Com esses dois presidentes no poder as negociações com a União Europeia voltaram a avançar, até que em 2019 as negociações foram finalizadas. Porém, durante o seu processo de ratificação, o tratado passou a enfrentar novos problemas a partir de 2019 com a eleição de Bolsonaro para a presidência do Brasil.
O ex-presidente já havia classificado o Mercosul como uma “amarra ideológica”,16 que dificultava negócios do Brasil com o resto do mundo. Porém, a conclusão das negociações fez com que Bolsonaro mudasse a sua percepção acerca do bloco.17 Mas, se por um lado o viés liberal do ex-presidente facilitou a aproximação econômica do Brasil com os europeus, por outro lado a nova política ambiental brasileira, que resultou em aumento de áreas desmatadas e emissão de gases CO2,18 acabou ampliando os questionamentos em relação ao impacto ambiental que o tratado poderia gerar. Nesse contexto, alguns governos na Europa passaram a trabalhar no sentido de evitar a ratificação do acordo.
Divergências entre os países da União Europeia
A conclusão do tratado, considerado o maior da história do bloco, é vista com bons olhos pela maioria dos países e comissários da União Europeia. O principal argumento é que a abertura de mercados daria uma vantagem competitiva para os Europeus no Mercosul, contra outros continentes, em setores estratégicos como as indústrias automobilística, farmacêutica, química e têxtil. Até mesmo na agricultura alguns produtores como os de vinho e chocolate poderiam ganhar mercado. Além disso, existe a percepção de que a aproximação econômica pode ajudar na implementação de novas parcerias que envolvam temas como direitos humanos, trabalhistas e desenvolvimento sustentável no futuro.19 Porém, para entrar em vigor, é necessário que todos os 27 países da União Europeia e os 4 do Mercosul cheguem a um consenso, e ao menos 7 países europeus demonstraram publicamente insatisfação em relação ao acordo.20
Nos últimos anos, o governo francês tem sido o principal oponente da assinatura do tratado por parte dos europeus. Apesar de alguns grupos na França apoiarem a assinatura, a maior parte dos políticos e grupos de interesse são contrários.21 Dentre esses grupos, vale ressaltar a atuação da Federação Nacional de Sindicatos de Exploradores Agrícolas (FNDES), que critica o acordo alegando riscos à segurança alimentícia e ambiental.22 O presidente francês Emmanuel Macron também demonstrou insatisfação com o acordo conforme proposto, e tentou impor compromissos ambientais adicionais aos países do Mercosul.23
Outro país europeu que tem exercido uma forte atuação contra a assinatura do tratado é a Irlanda. O parlamento irlandês aprovou uma moção pedindo que o governo rejeite o acordo, considerado por eles “ruim para a Irlanda e para o mundo”. Além de citar a questão ambiental, o parlamento irlandês alertou a respeito do caráter vinculativo do acordo, que tiraria a autonomia de governos futuros de definirem a sua política de comércio internacional.24
Apesar da preocupação ambiental representar um dos principais empecilhos para o acordo, existem também grupos de extrema-direita na Europa, que são contrários ao acordo, apesar de demonstrarem pouca preocupação com as mudanças climáticas e o meio ambiente. Os dois principais exemplos são o partido Vox,25 da Espanha, e a candidata Marine Le Pen,26 derrotada no segundo turno das eleições francesas. Esses grupos políticos não são contra o acordo pelo seu possível impacto ambiental, mas sim por serem abertamente protecionistas. No caso da França, a estratégia de Macron em se opor ao acordo pode ser explicada em parte como uma forma de enfraquecer o lobby dos agricultores franceses em favor de Le Pen.
Apesar da rejeição de alguns países, muitos diplomatas europeus mantêm a esperança de que as divergências podem ser superadas pela assinatura do acordo, e acreditam que a rejeição por parte de França já não é tão grande quanto antes. A Guerra da Ucrânia e a pandemia da Covid 19 evidenciaram a necessidade da Europa diversificar suas relações comerciais com outros continentes. Além disso, muitos acreditam que o resultado das últimas eleições na França e no Brasil em 2022 pode ter criado um cenário favorável para as negociações,27 pois o protecionismo de Marine Le Pen foi derrotado, assim como Bolsonaro e sua controversa política ambiental. Defensores do acordo também lembram que as novas regras da União Europeia em relação aos impostos de carbono, válidas para países de todo o mundo, ajudariam a atenuar o impacto ambiental que seria causado pelo acordo conforme proposto em 2019.28
Considerações Finais
Como pode ser visto, as críticas ao acordo comercial Mercosul-EU vem dos mais diversos grupos políticos, que vão desde associações de quilombolas e indígenas no Brasil até partidos de extrema-direita na França e na Espanha. Portanto, é necessário avaliar quais são os questionamentos em relação ao acordo que podem contribuir para uma cooperação mais justa, benéfica e funcional. É verdade que o protecionismo e o regionalismo fechado podem atrapalhar o dinamismo e o crescimento econômico dos países, porém, a abertura comercial, conforme foi proposta, também pode contribuir para agravar os problemas políticos, econômicos e sociais que os países do tratado deveriam estar focados em combater.
No caso do Brasil, o processo de desindustrialização que o país vem atravessando nas últimas décadas 29 faz com que a agricultura ganhe um peso cada vez maior no comércio exterior brasileiro , e passe a se tornar o principal setor da economia capaz de obter ganhos na competição internacional através do livre-comércio. Somado a isso, a concentração de terras nas mãos de poucos produtores irá fazer com que o acordo, caso implementado, beneficie um número relativamente pequeno de empresas em relação ao que poderia beneficiar. Portanto, apesar do impacto positivo no PIB esperado em caso de ratificação do acordo, deve-se questionar qual o tamanho da parcela da população que irá se beneficiar disso .Vale lembrar que 2% dos produtores agrícolas no Brasil são responsáveis por 62% do desmatamento tornando possível uma significativa redução da devastação das florestas no país punindo uma pequena minoria de produtores.30
No início de 2023, um grupo composto por 170 organizações sociais e diversos representantes em ambos os lados do Atlântico lançou uma declaração que ressalta a importância de aumentar a cooperação entre países da União Europeia e do Mercosul, mas também defende que essa cooperação deve ser traçada com base em outros princípios. Além de defender uma cooperação pautada em sustentabilidade, direitos humanos, trabalhistas, proteção dos animais e segurança alimentar, a declaração defende que a parceria econômica entre esses países não pode reforçar modelos que promovem a desigualdade social. Segundo essas organizações, os investimentos e o comércio traçado entre esses dois continentes deve buscar beneficiar os trabalhadores assalariados e famílias produtoras rurais ao invés tentar ampliar a concorrência, que pode ser desleal para pequenos produtores favorecendo as grandes corporações.31
Edição Final: Ana Luiza Lamarão Tavares
Referências:
1 2 10 11 12 15 Salgado, V,T & Bressan, R, N. O Acordo De Associação Mercosul e União Europeia e a Política Externa Brasileira, 2020.
3 20 25 Carinne Souza. Franceses, Sem Terra, Brics e Vox: quem quer boicotar o acordo de R$ 600 bilhões do Brasil com a EU, 2023.
4 5 18 Shefali Sharma. Climate, land use change and the EU-Mercosur Agreement: Accelerating tipping points, 2020.
6 Sharon Treat. Food safety and the EU-Mercosur Agreement: risking weaker standards on both sides of the Atlantic, 2020.
7 Mateus Maia. Lula diz que não se pode aceitar um “neocolonialismo verde”, 2023.
8 Luiz Cláudio Ferreira. No G20, Lula cobra recursos de países ricos contra o aquecimento global.
13 Frente Brasileira Contra os Acordos Mercosul-EU e Mercosul Efta, et al. Pôr fim às negociações por um acordo de liberalização do comércio obsoleto, neo-colonial e assimétrico,2023.
14 Delegation to the European Union to Brazil.The European Union and Brazil, 2021.
16 17 Andrea Ribeiro Hoffman. EU-Mercosur Relations after the EU-Brazilian Strategic Partnership, 2009.
19 European Comission. EU and Mercosul Reach Agreement in Trade, 2019.
21 23 27 28 Leali G, Gijs C & Aarupa S, A. EU hopes Macron will budge on Latin American trade deal 2023.
22 Daniela Fernandes. Na França, acordo entre UE e Mercosul enfrenta oposição e protestos de agricultores, ambientalistas e até ministros, 2019.
24 Eddy Wax. Irish parliament rejects EU-Mercosur deal in symbolic vote, 2019.
26 Fabio Galão. Em debate, Le Pen critica acordo UE-Mercosul e concorrência com a produção de frangos do Brasil, 2022.
29 DIEESE. Desindusrialização: Conceito e a Situação do Brasil, 2011.
30 Dummet, C & Bandell, A. Illicit Harvest, Complicit Goods: The State of Illegal Deforastation for Agriculture, 2021.
31 Seattle to Brussels Network. Solidariedade, Igualdade, Cooperação e Comércio Sustentável: uma alternativa ao Acordo Comercial UE-Mercosul
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